domingo, 18 de outubro de 2009

Ex-machina


Os retratos nas paredes te convidam à uma refeição com os mortos. Ao longo do corredor escuro, que tem uns quatro metros e meio, estão todos ali enfileirados. Me observam e estão de uma certa maneira mais vivos do que eu. A maneira como fitam meus olhos e a mim é como se eu fosse o quadro. Estou parado, mas meu rosto desliza sobre meus ombros e minhas pequenas mãos agarram o que sobrou de mim:
-Nada.
Cercado por observadores, analisando minhas roupas, expressão carregada de quase trinta anos, a composição pobre com poucas diagonais e algumas repetições justapostas finalizando aquilo que se vê e atenuando as linhas invisíveis.
O que realmente somos?
Quadros sem molduras pendurados pela vida, talvez essa seja uma das respostas. Cheiramos à óleo barato, poluição e produtos químicos que mais parecem vacinas contra o estado atual de vazio ao qual nos submetemos. A torpe existência.
Falando em estilo e composição não chegamos as pinceladas fortes, contínuas e emocionais de um Van Gogh.. Homem, trinta anos, calças e camisa preta, cabelo raspado, olhos mortos, negros e perdidos. Será isso que eles enxergam?
Apenas um parece olhar através de mim. Iluminação não era o melhor fator do lugar. Definitivamente eu não era um barroco, muito menos ela. Seu cabelo esvoaçava pela sua tez amarelada, os olhos vermelhos pareciam lançadores de faca circenses, isso era ela. E isto era eu. Ou quase tinha certeza de que era. Havia uma assinatura no lado esquerdo inferior, era minha.

A razão diz:
-Não seja tolo! Criasse algo. Algo que te corta, e é tão bem construído que nem sequer lembra dos detalhes!

A emoção diz:
-Olhe como ela te olha. O rubro daquele olhar não fora tu que criaste! Há vida própria neles. Uma vida que saiu de ti, e precisas recuperar rapidamente.

Eu digo:
- Como posso dar razão à razão? Ou pior ainda...como lidar com isso emocionalmente? Nada sei, ela não sou eu. Talvez nem o tenha sido alguma vez em algum passado remoto, ou o contrário.

Ela diz:

-Me possua. Sou a parte que esquecera. Sou a lembrança mórbida vilipendiada pelo externo. Precisa de mim.

Algo dentro de mim diz:
-Enlouqueci.

Ela sorri com ar de desprezo. Seu escárnio me atravessa.
Não há quadros, sem mais molduras. Só há nos dois , nus. Não de roupas, mas de almas. Vestindo apenas olhares com matiz avermelhada, sangrando internamente. Uma hemorragia interna de pensamentos desordenados.
O ambiente colore-se de negro, rapidamente o soturno invade. Algo entre Giotto e Caravaggio. Entre os umbrais ela caminha em minha direção. Os olhos com aquela pigmentação vermelho-cinzenta. A pele amarelada com nuâncias de cinza espectral.
-Não há porque temer. – Ela diz segurando os cabelos negros.
-Não temo o que criei. – Debocho.
-Será que criou?
-Não tenho certeza.
-Me beije – ela diz.

Vejo ela mover-se pela sala. Deslizando sobre o assoalho, sua forma de sombra. Não sinto absolutamente nada, ela acende a luz. Não há mais outros quadros, molduras. Só há um, e nele estou. Ela sorri  escarnecendo, fecha a porta.
Estático eu fico preso à parede.
-Então quem criou quem?

(escuridão.)


Um comentário:

Fernanda Rodrigues Barros disse...

Cada vez expressa melhor tuas criações poéticas-contos-reflexões! Altas referências:wilde, mary shelley, poe... invejo teus finais que são sempre muito bem concatenados.