domingo, 2 de agosto de 2009

No consultório.

Fora uma das piores noites, acordei com um intenso gosto de sangue em minha boca. Estava meio zonzo ainda devido excesso de álcool e antidepressivos. Chutavam a porta do quarto, os pontapés atravessavam minha têmpora como machados afiadissimos fatiando meu crânio. Era meu pai. Homenzinho cujo físico é deveras inferior ao meu, o quê não o impediu de ter me arrastado até o carro.



-Anda logo seu drogado de merda, hoje tu vais ver! - Dizia irritado, não sei bem ainda o porquê.



O caminho havia sido longo, não me recordo de ter pensado nada ou por assim dizer qualquer coisa. Quando recobrei-me estava no elevador. Terceiro andar. Aquele homenzinho me arrastara até a porta e disse:



-Te vira, seu merda.



Arrumei minha velha roupa, aqueles blusões que tem anos de vida. E depois de um tempo fazem já parte do que tu és. Indissociavel assim como alguns pensamentos onde a ausência me acompanhava. Havia uma placa ali - "Dra Cynthia - Psiquiatra". Era onze da manhã. Chovia muito. Foi um daqueles momentos que pareciam uma vida inteira e pairava ali ante a escolha de escolher ou não. Entrar ou ficar ali parado. Queria um gole de vinho, mas na minha mochila só tinha livros e cigarros. Das trevas parecia surgir a tal doutora.



-Bom dia, exactamente na hora Sr. Leabout. - Ela sorria, pessoas efusivas acabam o dia de qualquer um.

-Não há nada de bom nesse dia, e odeio que me chamem assim. - Novidade? Nenhuma, mais um dia daqueles.

-Irá melhorar, como preferir... Renee, sente-se.

Não me sentei na poltrona, era de couro e cinza. Pensava que aquilo era tão artificial e surreal quanto a situação a qual estava passando naquele insólito instante.

-Prefiro ficar em pé - murmurei.

-Tanto faz, vamos começar?

-Começar o quê?

-A consulta, rapaz- É estranhamente incomum alguém na mesma faixa etária te chamar de "rapaz" soava como pejorativo.

-Ah...

Finalmente havia decidido me sentar na porcaria da poltrona cinza, era de couro. Artificial creio eu. Ela já estava sentada, com a mão esquerda segurava uma caneta tinteiro. A caneta era preta e prateada. Ficava escrevendo em um caderno preto da Hell-o-Kitty (sem eufemismos). A pele dela era muito clara, podia-se enxergar algumas veias. Seus cabelos eram castanhos claros, bem cuidados diga-se de passagem. Ela mexia nos óculos que eram meio quadrados e não era vermelho, nem negro. Ela ficava ali escrevendo. E lógico, eu nada tinha a dizer.



-Posso acender um cigarro? Perguntei com a minha cara que já previa o ensurdecedor tédio.

-Não, não pode - Não parava de escrever, ficou ali por mais uns cinco ou seis minutos.

Algumas laudas depois, a doutora segurava com suas mãos pequenas e delicadas, dedos arredondados, nenhum anel. Unhas pintadas de preto, nariz arrebitado. Levantou-se para arrumar os óculos e rompeu a quietude.



-Estás sob medicação?

-Sim

-Quanto tempo?

-Dez dias.

-Te sentes melhor?

-Faz diferença?

-Se sentir melhor?

-Não, o remédio.



Ela já retorcia os lábios, o superior era maior que o inferior. Não usava batom e tinha uma rachadura que era um corte longitudinal em ambos. Ela voltou a escrever.



-Posso ler um pouco? - perguntei.

-Não! - Ela parava de escrever e parecia um pouco instável.

-Por que não?

-Porque está consulta é cara, não vais querer desperdiçar tempo nem dinheiro, ? - Ela sorriu.

-É, quanto custa esta consulta?

-120.

-120??? Existem mulheres que cobram menos e não ficam falando merda ou escrevendo enquanto atendem. - Demorou, mas tinha cansado da branca de neve freudiana.

Ela fechou o caderno, inspirou todo o ar possível. Já viu por um acaso uma pessoa passar do branco para o vermelho passando pelo roxo?Não teria como explicar, mas foi o que eu vi.

Ela já estava fragilizada, irritada e prestes a dar o que eu queria, a receita.



-Escuta aqui, se tu não te ajudar. Como posso te ajudar? - Suspirou.

-Se eu que me considero mais apto para lidar comigo mesmo, por que deixaria alguém como tu lidar comigo?



-Ok, então vou fazer umas perguntas.

-Seja breve. Peguei um livro na minha mochila, era factotum do velho buk.

-Fuma?

-Sim.

Bebe?

-Sim.

-Usa drogas?

-Depende.

-Como assim, depende?

-, só licitas.

-Vida sexual activa?

-Não.

-Pretende ter uma?

-Pretende praticar comigo? Estás te insinuando? - Ela pediu por isso.

-Chega!- Fechou o caderno com raiva, ela realmente estava puta.

-Vou tentar outra abordagem...

-Mais prática?

-Não! Tu é um daqueles, ?

-Daqueles, o quê?

-Metido a espertinho. Assim vou acabar te afundando.

-Não senhora, relaxa.



Acendi um cigarro, ela acenou mandando eu apagar. Ela já estava abatida... Hoje em dia nós fumantes somos perseguidos, inclusive por péssimos médicos...

Ela fica ali me encarando, analisando cada gesto meu. E se tem algo que eu não suporte é alguém me encarando.



-Como foi seu dia? - Ela perguntou bocejando.

-Tenta de novo.

-Como? - Disse ela indignada.

-, tu és nova nisso não?

-Não, tenho este consultório e atendo já fazem três anos. - Novidade?

-Nunca ouvi falar.

-Quem te tratava antes?

- Dr. Ramão. Sabe quem é?

-Foi meu professor na federal - Ela estava adorando o papo, sabe criar laços com o paciente.

-Por isso tu é assim.

-Assim como, Renné?

-Olha, assim noob.

-O que é um noob.

-Deixa pra lá, me da os remédios de uma vez.

-Ainda não terminei de te avaliar.

Em um gesto quase obsceno ela tirou os óculos.

-Trabalhas?

-Isso importa? Qual teu nome mesmo? -Cynthia eu sabia, egos...

-Doutora Cynthia.

-Pais, ruins. Ahm.

-Como assim?

-Colocaram esse nome em ti.

-Cynthia?

-Não, doutora. - Ela realmente não entendia patavinas do que eu falava.



Então ela largou o caderno em um canto, inspirou mais ar. Deveria ter pulmões gigantescos.

-Deves estar orgulhoso, não? - Ela baixou a cabeça, juro que achei que ela se debulharia em lágrimas. Nota: Que tipo de médico usa saia e botas?

-Sim, estou orgulhoso. E tu?

-Não muito.

-Concordo, dra. Deves ter uns trinta anos, nenhum filho e ainda trabalha de psicóloga.

-Não sou eu o assunto aqui, guri. Acreditem, ela acendeu um cigarro.



-Por que tu podes fumar e eu não? - perguntei indignado.

-Porque eu quero e o escritório é meu.



Voltei a ler, ela não abriu mais a boca. Continuou a escrever no caderninho da Hell-o-Kitty e me deu a maldita receita. Uma hora completou-se juntei minhas coisas, ela esperou eu abrir a porta e disse:



-Só mais uma coisa, não te livrasse de mim.

-Espero ansiosamente por isso - Disse meio que quase sorrindo sem sorrir.

-Mentiroso!

-É. Tens razão.

-No final que vai rir, Reneé?

-A senhora, doutora. Não almejo sorrisos só estou aqui pela merda do remédio.



Fechei a porta e saí, apagaria nas próximas 8 horas. Pelo menos tenho calmantes.

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